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'Contos de Kolimá' começa a ser lançada

Estadão Conteudo

Redação Folha Vitória
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São Paulo - Mesmo sem termômetro, os prisioneiros antigos mediam o frio quase com exatidão: se há nevoeiro gelado, na rua faz 40 graus abaixo de zero; se o ar da respiração sai com ruído, mas ainda não é difícil respirar, então 45 graus; se a respiração fica barulhenta e visivelmente ofegante, 50 graus. Abaixo de 55 graus, o cuspe congela no ar. O cuspe congelava no ar há duas semanas. Quem escreveu isso foi o russo Varlam Chalámov (1907-1982), e ele conhecia bem como eram os invernos em Kolimá, no extremo leste da Sibéria. E como se lutava para sobreviver sem comida, agasalho, higiene ou respeito e com jornadas de trabalho desumanas.

Era ali que ficava um dos mais brutais campos de prisioneiros da União Soviética - para onde Chalámov, o "contrarrevolucionário trotskista", então com 30 anos, foi levado para uma temporada que se estendeu de 1937 a 1951, quando trabalhou em minas de ouro e carvão e em hospital, e foi seguida por mais cinco anos de exílio até que ele conseguisse voltar a Moscou. Esta traumática experiência não foi, porém, seu primeiro contato com o autoritarismo de Stalin (1878-1953). Prestes a completar 22 anos e estudante de Direito, ele foi surpreendido numa gráfica clandestina que rodaria panfletos com o "testamento de Lenin". Tachado de "elemento socialmente perigoso", foi preso pela primeira vez e passou três anos em campo de trabalho forçado na região dos Urais. Mas foi Kolimá que realmente o marcou.

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Filho de um padre ortodoxo, ele viveu, então, seus primeiros 22 anos em liberdade e os quase 20 seguintes como prisioneiro político. Ao sair de lá, livre, decidiu não virar a página. "O campo é uma escola negativa para qualquer um, do primeiro ao último dia. O homem - seja ele chefe ou prisioneiro - não deve vê-lo. Mas, se o vê, deve dizer a verdade, por mais terrível que seja.

Quanto a mim, decidi que dedicarei todo o resto da minha vida justamente a essa verdade." Esse trecho é citado por Irina P. Sirotínskaia, autora de Meu Amigo Chalámov, no prefácio da edição italiana da obra que tomaria outras duas décadas da vida do autor - ele morreu sem ver os seis volumes de Contos de Kolimá publicados na União Soviética. Afinal, apesar da morte de Stalin, a repressão continuava.

Os livros que a 34 começa a publicar agora no Brasil foram traduzidos com base na edição integral russa, organizada cuidadosamente pelo próprio autor - no mercado internacional é mais comum encontrar seleções de contos. A sugestão de publicação foi de Boris Schnaiderman. É dele a apresentação do primeiro volume que inclui, ainda, esse prefácio de Sirotínskaia. Para a árdua tarefa de trazer ao leitor brasileiro este assombroso universo de Chalámov - para quem "fidedignidade" seria a "força da literatura do futuro", a editora mobilizou oito tradutores.

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Um dos desafios foi entender a linguagem dos campos, um mundo particular e desconhecido até dos russos, já que o assunto era tabu e proibido. O estilo do autor também em nada se assemelha ao dos escritores clássicos nem ao dos outros sobreviventes que, como Chalámov, resgataram a experiência em livro - o mais conhecido é Arquipélago Gulag, do prêmio Nobel Aleksandr Solzhenitsyn.

É conciso, contundente, especialmente quando fala dos homens e das condições em que viviam, comenta Denise Sales. Ela traduziu o primeiro volume com a russa Elena Vasilevich, que vive aqui desde 2007. "Tentamos manter as frases curtas e a pontuação do autor pela característica do impacto", conta Denise. Segundo ela, algumas edições em outras línguas tomaram a liberdade de emendar períodos, e aí vira uma outra obra, menos chocante. "Mas quando ele escreve sobre a natureza, vemos uma narrativa com período longo, ponto e vírgula, muitos adjetivos. Ou seja, diferente de quando fala do homem, sempre de forma seca, como achava que eles ficavam naquelas condições. Sem nada de humano. Sem nenhuma beleza."

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Daniela Moutian também traduz seu volume, A Ressurreição do Lariço, o 5º da série, a quatro mãos com seu pai, Moissei. "Chalámov é a concisão total. Temos que polir frase a frase. Este é um dos livros mais difíceis que já traduzi. É o retrato do horror. Não tem como respirar com esses contos. É bruto, áspero, seco", diz. Nascido na Moldávia, em 1948, Moissei tinha lido uma edição clandestina da obra nos anos 1970 - ele deixou a União Soviética em 1972 para fugir do regime comunista e vive desde então no Brasil. Ele destaca a inteligência e erudição do autor como fatores que podem tê-lo ajudado a não enlouquecer e a sobreviver. Além de sorte, claro. "Porque morrer era muito fácil. Aquilo não foi brincadeira", diz.

"Saímos do livro com a sensação clara da quantidade de sofrimento que uma pessoa consegue suportar. E não é só o sofrimento físico. É a degradação moral, a humilhação. É tudo muito pesado. Mas o mais impressionante é como ele consegue extrair beleza daquilo, dar forma literária e fazer contos belíssimos", comenta o editor Cide Piquet. Em outubro, serão lançados A Margem Esquerda (Cecília Rosas), com prefácio de Roberto Saviano, e O Artista da Pá (Lucas Simone). Até o início de 2016, a coleção deve estar completa, com Ensaios Sobre o Mundo do Crime (Francisco Araújo), A Ressurreição do Lariço (Daniela Mountian e Moissei Mountian) e A Luva ou KR-2 (Nivaldo dos Santos).

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