/1034847/FOLHA_VITORIA_AMP_TOPO |
Entretenimento e Cultura

Mostra Internacional de Cinema de SP deu projeção a Manoel de Oliveira

Estadão Conteudo

Redação Folha Vitória
audima
audima
pp_amp_intext | /1034847/FOLHA_VITORIA_AMP_02

São Paulo - Houve um tempo em que o nome de Manoel de Oliveira era praticamente desconhecido no Brasil. Foi a Mostra de Cinema de São Paulo e seu criador, Leon Cakoff, que nos apresentaram a Manoel, que então se incorporou ao repertório cinefílico brasileiro.

A partir da retrospectiva que Leon promoveu, Oliveira tornou-se um nome corrente no Brasil, pelo menos entre aqueles que apreciam o cinema dito de arte, ou seja, diferente do mainstream comercial. Ele, em pessoa, passou a vir a quase todas as edições da Mostra, apresentava seus novos filmes, dava entrevistas e tornava-se familiar a todos nós.

Numa dessas visitas, reuniu-se a outro veterano do cinema, o fotógrafo Gabriel Figueroa (que trabalhou com John Ford e Luis Buñuel) e ambos trocaram ideias sobre o cinema. Nessa conversa de veteranos, havia quase dois séculos de experiências reunidas.

pp_amp_intext | /1034847/FOLHA_VITORIA_AMP_03

A verdade é que, também na Europa, o cinema de Oliveira começou a ser conhecido e, imediatamente, reconhecido, em especial na França, um tanto tardiamente. Meio marginal, no melhor sentido do termo, Oliveira era estimado apenas por gente que sabia ver filmes, como o crítico francês Serge Daney, que promovia sessões de suas obras em Paris.

A partir desse reconhecimento tardio, Oliveira aos poucos foi ganhando a aura de grande mestre e passou a frequentar os maiores festivais europeus. Atores de fama faziam questão de trabalhar em seus filmes. Catherine Deneuve, Marcello Mastroianni, John Malkovich, Irene Papas e outras estrelas do circuito internacional vieram reunir-se à trupe habitual do diretor, a atriz Leonor Silveira, o ator Luiz Miguel Cintra e, mais recentemente, seu neto, Ricardo Trepa.

Deve ser dito que o próprio Oliveira começou tarde. Filho de uma família burguesa do Porto, nasceu em 1908, frequentou escola de jesuítas e sua primeira paixão foi o esporte, não o cinema. Nadava, praticou atletismo e foi piloto de carros de corrida. Tinha também interesse pelo teatro e frequentou escola de atores. Trabalhou como ator no filme A Canção de Lisboa (1933).

pp_amp_intext | /1034847/FOLHA_VITORIA_AMP_04

Dois anos antes havia realizado seu primeiro filme, o curta-metragem em honra da sua cidade - Rio Douro, Faina Fluvial (1931), poético documentário sobre o rio e seu entorno humano. Só muito mais tarde se arriscaria na ficção com Aniki-Bobó (1942), falando da infância desvalida na Ribeira do Porto. Muitos veem, nesse filme, uma espécie de precursor da estética neorrealista que seria estabelecida pelos italianos, Roberto Rossellini à frente, no encerramento da Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

O fato é que, até então, Oliveira era apenas um cineasta bissexto. Tanto assim que 14 anos se passaram até que realizasse seu segundo longa, O Pintor e a Cidade (1956). Nada faria prever o ritmo frenético que imprimiu à carreira em sua longa maturidade, quando chegou a rodar um filme por ano, e às vezes até mais de um.

Alguns dos filmes mais famosos de Manoel vieram de adaptações de obras literárias, como Amor de Perdição (1979), de Camilo Castelo Branco, e Vale Abraão (1993), título com o qual rebatizou o clássico de Gustave Flaubert sobre o adultério, Madame Bovary. São obras que ilustram à perfeição o estilo maduro do autor. Lentas em seu andamento reflexivo, literárias (no melhor sentido do termo), muito rigorosas pelo apuro formal, exigem paciência do espectador e o recompensam na mesma proporção. Há que reconhecer que, em especial nessa fase, é um artista difícil. Não entrega tudo mastigado ao público.

pp_amp_intext | /1034847/FOLHA_VITORIA_AMP_05

Manoel, como raros artistas dessa atividade industrial que é o cinema, criou segundo as suas convicções e padrões estéticos, dando muito pouca satisfação a exigências de mercado. A partir de certa época em sua carreira sempre teve quem lhe financiasse os projetos, sem palpitar na parte estética, ou exigir que fizesse concessões a uma maior comunicação com o público. Paulo Branco foi esse produtor ideal durante muitos anos, até que brigassem.

Interessava a Manoel recriar a densidade dos textos literários em linguagem audiovisual. Assim como refletir filosoficamente, a partir do cinema, sobre temas como a linguagem, o tempo, a civilização, a cultura, e, em particular, a civilização portuguesa. Esta que, através de Luis de Camões, expressou o poderio de um império e depois teve de refletir sobre a decadência. São temas presentes em alguns dos seus grandes filmes como Non, a Vã Glória de Mandar (1990) ou O Quinto Império (2004).

pp_amp_intext | /1034847/FOLHA_VITORIA_AMP_06

Mais recentemente, meditou sobre o papel um tanto deslocado de Portugal no contexto da Europa unificada em Um Filme Falado (2003). A ideia, engenhosa, elege como protagonista a professora de História (Leonor Silveira), que leva a folha em viagem para que a menina conheça, in loco, os pontos maiores da civilização europeia. No navio, mãe e filha, convivem com passageiros de outras nacionalidades e idiomas. Todos se entendem entre si, através das línguas da cultura, como o inglês e o francês. Mas o idioma português fica de lado, como a mostrar a posição secundária que Portugal passou a ter no contexto europeu.

No entanto, é esse idioma, falado por mais de 200 milhões de pessoas, mas pouco conhecido fora das nações que o praticam, que Manoel de Oliveira faz questão de enaltecer num filme dedicado a um dos seus maiores cultores, o padre Antonio Vieira, com Lima Duarte interpretando o jesuíta em sua idade avançada. Palavra e Utopia (2000) é uma belíssima reflexão sobre o idioma culto como suporte do pensamento e do humanismo.

pp_amp_intext | /1034847/FOLHA_VITORIA_AMP_07

Esses filmes citados mostram Manoel a exercer essa prática do cinema como profundidade e rigor. Há, porém, outro aspecto que veio a ser cultivado a partir de certo ponto de sua trajetória - a leveza. É difícil conceber essa virtude apontada como essencial por Italo Calvino (em suas Seis Propostas para o Próximo Milênio) no cinema de Manoel, preconceituosamente definido como pesado. Mas basta ver filmes como Vou para Casa (2001) e Bela para Sempre (2006), para se convencer de que o diretor português era também praticante da arte da leveza. Curiosamente, esses dois filmes têm o ator francês Michel Piccoli como protagonista.

Em Bela para Sempre, Piccoli interpreta, já velho, o mesmo personagem que vivera em Bela da Tarde (1966), de Luis Buñuel. O filme é esse reencontro 40 anos depois do cliente com a prostituta vespertina vivida por Catherine Deneuve no clássico do mestre surrealista. Deneuve não quis repetir o papel e foi substituída por Bulle Ogier. O filme é breve, ágil e quase se resume a um jantar a sós entre os dois personagens.

pp_amp_intext | /1034847/FOLHA_VITORIA_AMP_08

Como sempre, em especial nesses últimos trabalhos de Manoel, a simplicidade liga-se a um sentido de mistério muito especial. É assim com Singularidades de uma Rapariga Loira (2009) e O Estranho Caso de Angélica (2010). No primeiro caso, a estranheza de um relacionamento amoroso que se destrói por uma talvez inexplicável cobiça. No segundo, algo ainda mais bizarro, um fotógrafo convidado a fotografar uma moça morta e que se apaixona por uma imagem.

Em O Gebo e a Sombra, com diálogos em francês, Manoel adapta a peça do seu conterrâneo Raul Brandão. Michael Lonsdale faz o Gebo, velho contador que precisa ainda trabalhar para a sobrevivência da família. Há um filho distante (Ricardo Trêpa) do qual se fala mas que está em viagem. O tema é dinheiro. E honestidade. O Gebo é um modelo de honradez. Por paradoxo, será obrigado a mentir por generosidade, para que sua mulher não sucumba à decepção. É um belo tema moral, filmado em ambiente único, com atores magníficos dizendo um texto cheio de nuances. Um cinema depurado, simples, leve, sem jamais deixar de ser profundo.

pp_amp_intext | /1034847/FOLHA_VITORIA_AMP_09

Manoel fez um cinema único, de pensamento, reflexivo e preocupado com os mistérios e os desvãos da alma humana. Não por acaso, sentiu-se atraído pela prosa límpida, irônica e reveladora de Machado de Assis e sua Igreja do Diabo. Quem leu o conto, sabe que é do entrelaçamento entre bem e mal que se tece o jogo da existência humana, mesmo na projeção religiosa da luta entre Deus e o diabo. Tal tema não poderia deixar de seduzir o velho cineasta.

/1034847/FOLHA_VITORIA_AMP_FINAL_DA_MATERIA |
/1034847/FOLHA_VITORIA_AMP_FINAL_DA_MATERIA |

Nós utilizamos cookies e outras tecnologias semelhantes para melhorar a sua experiência em nossos serviços, personalizar publicidade e recomendar conteúdo de seu interesse. Ao utilizar nossos serviços, você concorda com tal monitoramento. Saiba mais sobre nossa Política de Privacidade.