Devedor contumaz no ES: entenda o que diz a Lei 12.124
A norma carece de uma análise cuidadosa para não prejudicar toda a atmosfera empreendedora capixaba
*Artigo escrito por Teuller Pimenta Moraes, advogado, jurídico interno da empresa Ghisolfi Logística e Transporte, Diretor de Relacionamentos do IBEF Academy e Membro do Comitê Especial de Tributação Empresarial do IBEF-ES.pp_amp_intext | /1034847/FOLHA_VITORIA_AMP_02
2024 trouxe de volta à pauta um tema que não novo no direito tributário, mas segue polêmico: a figura do devedor contumaz.
Enquanto o governo federal ainda não regulamentou uma norma geral, no estado do Espírito Santo foi sancionada a Lei n.º 12.124/2024, que institui e identifica o empresário habitualmente inadimplente.
Não obstante o caráter punitivo a aqueles que têm como estratégia concorrencial o não pagamento de impostos, a norma carece de uma análise cuidadosa para não prejudicar toda a atmosfera empreendedora capixaba.
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Inicialmente, importa dizer que a nova legislação é formada por apenas dois artigos e alguns poucos incisos, o que torna a lei direta e objetiva, fato que, revelou-se prejudicial pelas lacunas e imprecisões apresentadas.
De acordo com o art. 1º, inciso I, é considerado devedor contumaz o contribuinte que deixar de recolher, no todo ou em parte, imposto relativo a seis períodos de apuração consecutivos ou alternados no período dos últimos 12 meses, em valor superior ao fixado em futura regulamentação.
Além disso, inclui, no inciso II, aqueles com débitos tributários inscritos em Dívida Ativa acima dos valores definidos em regulamentação.
De imediato, observa-se que a definição é ampla e pode englobar contribuintes que, por questões de dificuldades financeiras temporárias, deixaram de cumprir com suas obrigações.
A falta de distinção entre inadimplência intencional e dificuldades momentâneas pode levar a injustiças. Ademais, a ausência de critérios claros e independentes de futura regulamentação pode gerar insegurança jurídica.
Logo após, em seu §1º, a norma descreve que os devedores contumazes estarão sujeitos a um Regime Especial de Fiscalização, que inclui:
1) Monitoramento constante do cumprimento das obrigações tributárias;
2) Análise em tempo real da emissão e recepção de documentos fiscais eletrônicos e meios de pagamento.
Embora o monitoramento em tempo real possa aumentar a eficiência da fiscalização, ele pode ser considerado excessivo e invasivo, impactando negativamente a privacidade empresarial.
Isso sem se considerar que a implementação desse regime pode requerer investimentos tecnológicos significativos tanto do Estado quanto das empresas, o que pode ser inviável para muitas pequenas e médias empresas.
Ainda, a lei pode gerar uma dificuldade no caixa das empresas. O inciso II do §1º, altera o prazo de recolhimento do imposto para devedores contumazes para o momento da saída da mercadoria ou início da prestação do serviço.
Essa medida pode causar problemas de fluxo de caixa para as empresas, especialmente aquelas que operam com margens apertadas.
Antecipar o pagamento dos impostos pode aumentar a pressão financeira sobre os contribuintes, levando a um ciclo vicioso de inadimplência.
Não somente aquele dito devedor contumaz será alvo da legislação, mas inclusive seus parceiros comerciais. De acordo com os incisos III e IV também do §1º, a responsabilidade pelo recolhimento do imposto pode ser atribuída ao destinatário da mercadoria ou ao tomador do serviço.
A atenção nesse ponto deve ser redobrada, haja vista que a responsabilidade solidária pode desincentivar negócios com empresas classificadas como devedores contumazes, aumentando a estigmatização e dificultando a recuperação financeira dessas empresas.
Mais uma vez, então, gera-se um ambiente de insegurança jurídica, na qual terceiros são penalizados por dívidas alheias, violando o princípio da responsabilidade pessoal e direta.
Enquanto o §3º alarga a penalização para todos os estabelecimentos do devedor contumaz, o §4º busca evitar fraudes, aplicando a caracterização a novas empresas resultantes de fusão, cisão, transformação ou incorporação da empresa original.
O último ponto da legislação diz respeito a perda dos benefícios fiscais ao devedor contumaz. Mais uma vez, disse menos do que deveria a legislação, pois deixou a regularização dessa punição em futuro regulamento.
Como ventilado, a questão do devedor contumaz está em intenso debate também no Congresso Nacional.
No início deste ano, o governo Lula apresentou o Projeto de Lei 15/2024, que inicialmente tramitou em regime de urgência na Câmara dos Deputados.
No entanto, devido à falta de consenso para sua aprovação, o texto retornou ao trâmite ordinário. Paralelamente, no Senado já existe para votação o Projeto de Lei Complementar 125/2022, que, dentre vários termas, aborda a caracterização do devedor contumaz.
Todas essas medidas são chamadas como “anti-crime by design”. Elas visam a necessidade de incorporar estratégias de prevenção ao crime no desenvolvimento de todas as políticas públicas, em todas as áreas da administração pública.
É crucial que considerar com cuidado ao implementar – ou omitir – novos modelos fiscais, avaliando os potenciais impactos que possam dificultar o ambiente econômico como um todo.
É evidente que não se pode admitir que se ganhe mercado por meio de sonegação e fraude, haja vista a ofensa pelo menos os princípios da igualdade tributária, da finalidade e da eficiência administrativa e deflagraria violação à livre concorrência.
Isso macula toda a cadeia de atuação de um mercado sadio, em que se privilegia a competição para que se destaque aquele que, em igualdade de mercado, oferece mais qualidade e melhores produtos.
Assim, a legislação capixaba, embora tenha a intenção de evitar fraudes, pode ser excessivamente punitiva.
Empresas que passam por processos de reestruturação por motivos legítimos podem ser injustamente penalizadas, o que pode desincentivar práticas de reestruturação empresarial benéficas e necessárias para a sobrevivência de negócios.
Ou ainda, parceiros comerciais que em nada contribuem com a declaração de devedor contumaz de um cliente, passam a ter o ônus que cabe ao fisco.
Esses movimentos legislativos refletem a complexidade do tema, destacando a necessidade de uma regulamentação eficaz que equilibre o combate à inadimplência crônica com a manutenção da atividade econômica saudável.
De acordo com Hugo de Brito Machado, a distinção entre inadimplência ocasional e habitual é fundamental para uma fiscalização justa e equitativa (MACHADO, H. B. "Curso de Direito Tributário").
A aplicação uniforme de medidas severas pode violar o princípio da proporcionalidade, conforme já decidido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em casos de sanções fiscais excessivas.
Também, no julgamento do RE 574.706/PR, o STF destacou a necessidade de medidas fiscais proporcionais e razoáveis, afirmando que a punição deve ser adequada à gravidade da infração tributária.
Por tudo isso, a Lei nº 12.124 do Espírito Santo apresenta um esforço legítimo para combater a sonegação fiscal e promover a justiça tributária.
No entanto, sua aplicação pode gerar inseguranças jurídicas e impactos financeiros significativos para os contribuintes.
É essencial que futuras regulamentações esclareçam os critérios e limites das disposições, garantindo uma aplicação justa e proporcional, em consonância com os princípios constitucionais e a jurisprudência do STF. O equilíbrio entre eficiência fiscal e justiça tributária é crucial para a eficácia e legitimidade da legislação tributária.
*Este texto expressa a opinião do autor e não traduz, necessariamente, a opinião do Instituto Brasileiro de Executivos de Finanças do Espírito Santo