Fim da hegemonia do dólar: vem aí uma nova ordem monetária?
O afastamento do dólar como moeda de reserva mundial tem implicações significativas para a economia global e pode afetar a estabilidade econômica
* Artigo escrito por Davi Menegon, administrador com MBA em Finanças e Investimentos, sócio e assessor da The Wall Investimentos e membro do Comitê Qualificado de Conteúdo de Economia do IBEF-ES.
Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, o dólar americano tem sido um pilar constante e imutável na economia global. Uma grande parte dessa estabilidade foi moldada pelo Acordo de Bretton Woods, estabelecido em 1944.
Este acordo, que envolveu 44 nações, estabeleceu um sistema monetário internacional pós-guerra no qual as moedas dos países signatários foram vinculadas ao dólar, que, por sua vez, estava vinculado ao ouro.
Isso significava que o dólar americano se tornava a moeda de reserva do mundo, com outros países mantendo reservas de dólar para garantir a estabilidade de suas próprias moedas.
Com os Estados Unidos e a maioria das nações industrializadas adotando o dólar como moeda de reserva, a hegemonia do dólar foi fortalecida na economia global.
Contudo, nas últimas décadas esse cenário tem se alterado, impulsionado principalmente pelo crescimento econômico de novas potências, como a China e a Índia, e o surgimento de inovações financeiras como as criptomoedas.
Além disso, fatores como guerras comerciais, uma elevada dívida pública e as estratégias de política monetária dos EUA têm alimentado as preocupações sobre a saúde econômica do país, suscitando questionamentos sobre a manutenção do dólar como moeda de reserva mundial dentro desse cenário em que se sugere uma possível reconfiguração da ordem monetária global.
Déficits comerciais e o afastamento do dólar
O papel dos déficits comerciais dos Estados Unidos é crucial na dinâmica da economia global. Quando os EUA compram mais produtos e serviços de outros países do que vendem para eles, isso cria um déficit comercial.
Esse déficit é financiado normalmente por meio de endividamento ou venda de ativos dos EUA para o exterior.
No passado, as nações estrangeiras eram fundamentais para financiar esses déficits. No entanto, observamos recentemente uma mudança nessa dinâmica. Por exemplo, durante a pandemia da covid-19, quando os EUA aumentaram significativamente seus empréstimos para impulsionar a economia, os investidores estrangeiros não se mostraram tão dispostos a comprar essa nova dívida. Em vez disso, optaram por outros ativos, como ações e fundos de investimento.
Apesar dessa mudança, o capital estrangeiro continuou a entrar nos EUA, ajudando indiretamente a financiar o endividamento do governo. Porém, a contribuição estrangeira foi modesta, indicando uma relutância crescente em financiar o déficit dos EUA.
Essa relutância está levando a um movimento de desdolarização, em que as nações começam a usar suas próprias moedas ou alternativas para o comércio.
O acúmulo de déficits comerciais dos EUA, resultante de várias décadas de importações superando as exportações, resulta em uma grande quantidade de dólares circulando globalmente. Se a demanda por dólares não acompanhar essa oferta, a moeda pode se desvalorizar.
Paralelamente, os déficits fiscais dos EUA, exacerbados por políticas de estímulo fiscal como cortes de impostos e aumento dos gastos governamentais, têm aumentado a dívida pública.
Embora essas medidas possam impulsionar o crescimento econômico a curto prazo, elas também levantam questões sobre a sustentabilidade da dívida a longo prazo.
Em resposta à pandemia da covid-19, o Federal Reserve (o banco central dos EUA) adotou políticas monetárias expansionistas, como a redução das taxas de juros para quase zero e o lançamento de programas de compra de ativos.
Essas ações, embora destinadas a estabilizar a economia, aumentaram a oferta de dólares e levantaram preocupações sobre a inflação e a desvalorização do dólar.
Recentemente, o Federal Reserve adotou uma abordagem mais flexível em relação à inflação, permitindo que ela suba temporariamente acima da meta de 2%. Essa ação sinaliza uma maior tolerância à inflação, o que poderia levar à desvalorização do dólar.
Resumindo, a junção de déficits comerciais constantes, políticas fiscais e monetárias expansionistas e as recentes alterações na política do Federal Reserve estão colaborando para uma expansão na oferta de dólares. Isso, à longo prazo, pode colocar em risco o status do dólar como a principal moeda de reserva mundial.
Economias emergentes e o dólar
O afastamento do dólar como moeda de reserva mundial tem implicações significativas para a economia global e pode afetar a estabilidade econômica dos países com dívidas denominadas em dólares.
Quando o dólar é desvalorizado ou outras moedas ganham força, esses países podem encontrar dificuldades para pagar suas dívidas. Além disso, uma mudança na moeda de reserva pode influenciar as taxas de juros globais e as decisões de política monetária em todo o mundo.
O papel do dólar nas economias emergentes é crucial. Esses países, muitas vezes, dependem dessa moeda para realizar negociações e empréstimos internacionais.
Caso a hegemonia do dólar seja desafiada pode representar um aumento na inconstância dessas economias, uma vez que suas dívidas estariam denominadas no dólar.
Por exemplo, economias emergentes, como a Argentina e a Turquia, têm dívidas consideráveis em dólares.
Se essa moeda perder sua posição dominante e esses países não conseguirem se adaptar rapidamente a um novo sistema monetário, eles podem enfrentar dificuldades para pagar suas dívidas. Isso poderia levar a crises de dívida, instabilidade financeira e até recessão.
Inclusive, muitos desses países dependem das exportações para os EUA. Se a relevância do dólar diminuir, poderia alterar significativamente as dinâmicas do comércio internacional, potencialmente prejudicando as economias que dependem do mercado dos Estados Unidos.
No entanto, também há oportunidades nesse cenário. A transição para um novo sistema monetário poderia oferecer às economias emergentes a chance de diversificar suas reservas monetárias e reduzir sua dependência do dólar.
Além disso, se a transição for bem gerida, as economias emergentes poderiam se beneficiar de um sistema monetário global mais equilibrado e menos sujeito às flutuações da economia dos EUA.
Desdolarização global: movimentos emergentes e os desafios adiante
Vários países estão buscando mais independência em relação ao dólar. A China, por exemplo, tem sinalizado para um futuro menos dependente dessa moeda com o lançamento do e-yuan, sua moeda digital.
Além disso, a nação asiática tem liderado iniciativas para realizar transações comerciais em moedas locais com diversos parceiros, como os Emirados Árabes Unidos e o Brasil. Países do Sudeste Asiático, como Indonésia e Tailândia, e a Rússia também têm promovido sistemas de pagamento com moeda local para o comércio.
No entanto, essas alternativas enfrentam desafios. O euro lida com questões de unidade política dentro da União Europeia, enquanto a internacionalização do yuan é limitada pelas restrições da China à livre movimentação de capitais.
Em meio a isso, o bloco BRICS, composto por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, está planejando introduzir uma moeda completamente nova para o comércio entre esses países, como resposta à crescente insatisfação com o domínio do dólar e seu uso pelos EUA como instrumento de sanções.
A moeda proposta, liderada pela China e Rússia, seria vinculada ao ouro, especificamente a um peso fixo deste metal, a fim de evitar manipulações de mercado.
Com esta nova moeda, os países do BRICS teriam um interesse muito maior em aumentar o valor do ouro em relação ao dólar, não apenas através de sua própria produção, mas também por meio de compras físicas.
Uma nova ordem monetária: multipolar e digital
A suposta decadência da hegemonia do dólar está pavimentando o caminho para uma nova era na economia global.
O sistema que outrora estabeleceu o dólar como a moeda de reserva mundial é, agora, questionado por muitos economistas que defendem a adoção de um sistema monetário multipolar.
Neste novo sistema, várias moedas, ao invés de apenas o dólar, desempenhariam papel fundamental na economia mundial, competindo entre si pela dominância.
As moedas digitais, como Bitcoin e Ethereum, estão surgindo como alternativas descentralizadas ao sistema bancário convencional.
Elas permitem transações peer-to-peer, um termo em inglês que significa “de pessoa para pessoa”.
Basicamente, essa expressão se refere a transações que acontecem diretamente entre duas partes, sem a necessidade de um intermediário, como um banco.
Portanto, as criptomoedas estão permitindo que as pessoas façam transações financeiras diretamente entre si, desafiando a hegemonia do dólar.
A aceitação crescente de criptomoedas sugere uma tendência de descentralização na economia global, com a tecnologia blockchain desempenhando um papel cada vez mais proeminente. As moedas digitais utilizam essa tecnologia que oferece um nível sem precedentes de transparência e segurança, incluindo transações verificáveis e imutáveis.
Elas adicionam um nível extra de segurança à economia digital global e atraem um número crescente de investidores e empresas.
As criptomoedas, que operam além das fronteiras nacionais e resistem à censura, ganham importância, sobretudo em países com regimes autoritários ou economias instáveis.
Este movimento em direção à desdolarização está ganhando impulso também com países como China, Rússia e Brasil usando suas moedas locais para comércio, o que indica a emergência de um mundo monetário multipolar.
Embora isso possa reduzir a dependência de qualquer moeda única, também traz consigo desafios, como a necessidade de sistemas de pagamento mais complexos e a possibilidade de volatilidade cambial aumentada.
A falta de uma entidade central reguladora das criptomoedas pode ser vista como desvantagem, principalmente quando se trata de usá-las como reserva de valor.
Os governos e organismos regulatórios globais estão se esforçando para adequar estas novas formas de dinheiro aos quadros regulatórios existentes, o que não é uma tarefa simples.
A descentralização das criptomoedas é garantida em um cenário no qual não são emitidas por um banco central, dificultando o controle governamental sobre sua emissão e uso.
Ademais, as criptomoedas podem ser usadas para realizar transações anônimas, aumentando o risco de atividades ilícitas como evasão fiscal e lavagem de dinheiro.
Violações de segurança, levantaram questões sobre a proteção dos ativos mantidos em moedas digitais.
Desafios regulatórios e de segurança requerem um acompanhamento atento das últimas notícias e desenvolvimentos no campo das moedas digitais.
Bancos centrais e moedas digitais
Bancos centrais ao redor do mundo estão explorando a emissão de suas próprias moedas digitais, conhecidas como CBDCs (Central Bank Digital Currencies), para modernizar o sistema financeiro e manter o controle da política monetária em um mundo cada vez mais digital.
De fato, aproximadamente 114 bancos centrais estão em alguma fase de exploração do CBDC, com cerca de dez já implementando a tecnologia.
Notavelmente, o Fundo Monetário Internacional (FMI) está trabalhando em uma plataforma global para CBDCs permitirem transações entre países.
O FMI destaca a importância de uma estrutura regulatória unificada para moedas digitais e a habilidade de elas funcionarem em conjunto, para prevenir a divisão.
No cenário atual de incertezas, os bancos centrais desempenham um papel crucial.
Alguns estão acumulando ouro como forma de segurança, enquanto outros estão se adaptando ao ambiente digital e explorando a ideia de emitir suas próprias moedas digitais.
Essa decisão tem o potencial de acelerar a transição para um sistema de múltiplas moedas de reserva, reduzindo a dependência do dólar.
Dentro de um contexto em que se aumenta a demanda pelo ouro, espera-se que o seu valor aumente nos próximos anos, o que torna essencial para os bancos centrais considerar cuidadosamente suas estratégias à medida que esse metal se torna uma parte cada vez mais significativa do comércio internacional.
Paralelamente, o ouro continua sendo um refúgio seguro para muitos investidores, oferecendo proteção contra a inflação e a instabilidade econômica. A era digital não diminuiu a relevância do ouro, mas forneceu novas maneiras de se adaptar e prosperar.
Conclusão: a transformação em curso do sistema monetário global
No centro dessa mudança, destaca-se a necessidade de adaptação. Empresas, investidores e governos terão que ajustar suas estratégias para prosperar em um cenário onde o dólar não detém mais a supremacia.
A diversificação monetária se tornará cada vez mais relevante, com investimentos em moedas distintas e ativos, como ouro e criptomoedas, ganhando posições de destaque.
O mundo interconectado e crescentemente digital de hoje nos mostra a inevitável evolução do sistema monetário global. Estamos diante de uma mudança de paradigma que desafia as normas tradicionais e redefine os princípios econômicos estabelecidos ao longo da história.
Essa transição pode sinalizar o fim de uma era dominada pelo dólar, mas também abre caminho para uma nova fase de experimentação, inovação e diversidade na economia global.
Neste novo cenário, podemos esperar uma combinação de moedas fiduciárias, criptomoedas e moedas digitais emitidas por bancos centrais, cada uma desempenhando funções únicas e complementares.
Em última análise, a emergência de um novo sistema monetário multipolar e digital traz tanto oportunidades quanto desafios. Embora possa levar a um maior equilíbrio no sistema financeiro global, também exige uma adaptação significativa por parte de países, bancos e empresas.
O domínio do dólar pode estar sendo desafiado, mas é importante ressaltar que uma transição para um novo sistema também trará seus próprios desafios e sua incertezas.
Portanto, é essencial estar preparado para navegar neste novo arranjo monetário com cuidado e diligência, com o objetivo de maximizar as oportunidades e minimizar os riscos.